É indubitável que a racionalização e a modernização das garantias mobiliárias facilitarão seu uso, ampliarão o acesso ao crédito e favorecerão a economia [1]. Tal é sobremodo importante pois, em tempos de pandemia, há que se aumentar o crédito e reduzir seu custo. A utilização de bens móveis (veículos, máquinas equipamentos, estoques etc.), como garantia na obtenção de crédito é valiosa para empresas de qualquer porte. Contudo, é especialmente benéfica para médias, pequenas e microempresas, cujo patrimônio é composto em grande parte por bens móveis, atualmente pouco utilizados como contrapartida de garantia; em grande parte por ser o sistema registral brasileiro, extremamente intrincado e defasado. Tendo em vista que as empresas de menor porte representam cerca de 40% do PIB brasileiro, a economia beneficiar-se-ia consideravelmente se esse segmento empresarial tivesse acesso a crédito barato e fácil. Na prática, há dificuldades tanto para os tomadores quanto para os cedentes de crédito, dificuldades essas transferidas diretamente ao custo da transação financeira via incremento dos juros.
Os interessados em oferecer bens móveis em garantia encontram, mormente, as seguintes dificuldades: I) inscrição e cancelamento de garantia não estarem necessariamente sujeitas a um procedimento padronizado, podendo variar dependendo tão-somente do cartório de registro; II) descumprimento injustificado de prazos pelos participantes do sistema atual de registro, que podem, também, variar de estado federado para estado, atrasando transações quando o mesmo tomador de recursos possui bens dispersos territorialmente; e III) complexidade do cálculo e falta de uniformidade nos valores a serem pagos pelos usuários, além da existência de gastos desnecessários causados pelo duplo registro de bens, que ocorre tanto por insegurança quanto ao lugar correto quanto pela falta de interoperabilidade entre as centrais estaduais de todo o país.
Do prisma dos cedentes de crédito, o sistema atual também impõe desafios limitantes, com lentidão, onerosidade e insegurança jurídica dos registros, visíveis especialmente pela dificuldade de se obter informações completas e atualizadas sobre a situação dos bens usados como garantia. Mudanças poderiam superar tais dificuldades se fossem implementadas, eficiente e celeremente.
Inúmeros documentos oriundos de organizações internacionais sugerem a adoção de sistema de registro centralizado, eletrônico e de baixo custo: a Lei Modelo Interamericana de Garantias Mobiliárias da OEA (Washington, 2002), a Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da UNCITRAL (Viena, 2016), a Convenção sobre Garantias Internacionais Incidentes sobre Equipamentos Móveis da UNIDROIT (Cidade do Cabo, 2001) e seus protocolos aeronáutico e MAC (mineração, agricultura e construção).
A Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da OEA e a da UNCITRAL trazem conceitos de garantia amplos, bem adaptados à realidade atual, permitindo que qualquer coisa possa ser dada em garantia. De fato, podem ser usados como garantia uma coisa individualmente considerada ou um conjunto de bens e direitos, específicos ou de categorias genéricas, ou mesmo todos os bens móveis do devedor, presentes ou futuros, corpóreos ou incorpóreos, suscetíveis de um valor pecuniário, quer no momento da transação, quer no futuro. Tal acrescenta flexibilidade e deixa de lado conceitos frios e rígidos que limitam o uso de garantias.
Além disso, ambas as leis incorporam a ideia de registro eletrônico e remoto acessíveis por senha. As buscas podem ser realizadas pelo nome do devedor e, em alguns casos, permite-se fazer um pré-registro sem necessidade de o contrato de garantia já estar assinado ou o crédito já ter sido outorgado pelo credor. Em tais sistemas, o registro de garantias é bem simples, sendo realizado por meio de formulários que pressupõem apenas cinco dados relevantes dos usuários (sem necessidade de outros documentos comprobatórios, a não ser o contrato de garantia em si): I) nome e endereço do garantidor; II) valor máximo garantido, em vez de valor fixo (vantagem importante em países com inflação alta); III) nome e endereço do credor garantido; IV) descrição dos bens, que pode ser geral ou específica (útil no registro de bens fungíveis ou de bens futuros); e V) nome dos devedores.
A implementação de um registro centralizado, com acesso em um único ponto da internet, resolveria vários dos desafios. Registro central significa uma base central a que se conectariam todas as unidades de serviços do país; ou seja, cartórios, ofícios e centrais. Dessa forma, evitar-se-ia o duplo registro. Em havendo acesso ágil e indiscriminado a certidões e informações, qualquer interessado poderia fazer uso do sistema, inclusive o menos instruído. Além disso, a operação seria mais célere, pois todas as informações estariam em um único local, barateando-se o custo de due diligence e acelerando a análise de riscos pelo cedente do crédito; agilizando a chegada dos recursos ao bolso do tomador. A centralização implicaria também em padronização. Seriam superadas as atuais diferenças entre os estados federados, permitindo interoperabilidade entre as centrais estaduais e os cartórios locais. Ajudaria, ademais, na interconexão das unidades de registro de bens móveis com o Poder Judiciário e outros órgãos da administração pública. Por fim, o registro centralizado será útil caso o Brasil ratifique o Protocolo MAC, a fim de conseguir oferecer e registrar garantias sobre bens móveis de alto valor nos setores de mineração, agricultura e construção a nível internacional.
Abandonando-se o uso de papel, uma plataforma de registro eletrônico ensejaria economia apreciável na operação e guarda dos documentos, aumentando a segurança, velocidade e acessibilidade, inclusive em regiões, atualmente, fora do alcance de cartórios, ou de difícil acesso. Qualquer usuário teria o mesmo nível de informação, utilizando seu próprio telefone celular. Os benefícios, em muito, superam os desafios de instalação, manutenção e sigilo, que por sua vez estão ainda começando a ser tratados com maior profundidade pelo legislador.
Registro de baixo custo, a ser adotado, necessita possuir dois predicados: barato o suficiente para atrair os usuários a aceder, embora hábil para que os cartórios obtenham lucro razoável. Para aumentar o número de operações e reduzir gastos individuais é imperativo haver: I) procedimentos homogêneos na fixação dos emolumentos; II) a publicação de tabelas claras; e III) custo de registro de uma transação suscetível de ser orçado prévia e rapidamente.
Com um registro central eletrônico e de baixo custo todos os envolvidos ganham. O aumento no número de transações significaria mais emolumentos para os cartórios, mais juros para os credores e mais crédito para os tomadores injetarem em seus empreendimentos, favorecendo emprego e arrecadação, com um mecanismo pautado na publicidade dos atos e na segurança jurídica.
A proposta acima não exigiria demasiado esforço das autoridades e participantes envolvidos. O Brasil já tem inclusive experiências positivas na utilização de registros públicos únicos e centralizados, como é o caso do Registro Aeronáutico Brasileiro (RAB), usado para registrar hipotecas sobre aeronaves; e a ratificação pelo Brasil da Convenção sobre Garantias Internacionais Incidentes sobre Equipamentos Móveis e respectivo protocolo, firmados na Cidade do Cabo, em 2001, que faculta registros eletrônicos e centrais, bem como mecanismos de execução das garantias.
Além disso, o Brasil pode se beneficiar da experiência de vários dos países de América Latina [2] que têm adotado esses modelos e reformado seu sistema de garantias mobiliárias. Com isso haveria aumento considerável do fluxo de comércio internacional na região e possível integração por ter um sistema de registro comum.
A crescente necessidade de acesso a capital, em tempos de pandemia, fez com que algumas ideias, anteriormente lançadas, começassem a ser cogitadas. A mais recente foi a possível criação de plataforma de Consulta Unificada de Restrições e Garantias (CURG) que permitiria justamente centralizar as informações sobre garantias e restrições de bens dos cartórios de RTD, RI, Central Nacional de Indisponibilidade de Bens CNB baseada em buscas pelo identificador pessoal (CPF, CNPJ).
As mudanças acima são necessárias para simplificar, agilizar e aproveitar ao máximo a alta capacidade produtiva, hoje desperdiçada pela burocracia, atraindo investidores nacionais e estrangeiros e impulsionando a economia. Um sistema menos complexo certamente gerará muitas oportunidades a todos os envolvidos.
P.S.: O presente artigo segue as linhas mestras e a fundamentação da conferência da professora Constanza Bodini feita no Programa de Conferências online do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes), em 6 de junho de 2020.
[1] Rodas, João Grandino. "Facilitar o uso de garantias mobiliárias incrementaria a economia". ConJur, 4 de junho de 2020. Publicado em https://www.conjur.com.br/2020-jun-04/olhar-economico-facilitar-uso-garantias-mobiliarias-incrementaria-economia.
[2] Peru, Guatemala, Honduras, Salvador, Panamá, Costa Rica, Colômbia e México.
João Grandino Rodas é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).
Esse texto foi originalmente publicado na coluna Olhar Econômico da revista eletrônica Consultor Jurídico e pode ser acessado em https://www.conjur.com.br/2020-jun-11/olhar-economico-sistema-registral-favorecer-utilizacao-garantias-mobiliarias
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