A União Europeia é pioneira no tratamento jurídico do comércio eletrônico, profundamente impactado pela atual economia fundamentada em dados e na digitalização[1].
Nos últimos anos, tivemos um crescimento acentuado e acelerado do comércio eletrônico. O Relatório Webshoppers, de 2019[2], demonstra que o crescimento do comércio eletrônico, de 2016 a 2018, passou de 94 para 133 bilhões de reais de faturamento; com tendência de aumento exponencial para o biênio subsequente, devido principalmente à pandemia[3].
A lógica subjacente aos shoppings virtuais é a mesma à dos shoppings físicos: vários fornecedores/empresas ofertam produtos e serviços em uma mesma plataforma online: o marketplace. Tal reduz custos operacionais, beneficiando consumidores, que encontrarão uma série de produtos e serviços em um único local; e lojistas que ofertam seus produtos dentro da plataforma do marketplace.
É característico do marktplace ser uma rede contratual, ao menos triangular, composta de contrato entre: (i) a plataforma e o vendedor; (ii) a plataforma e o comprador; e (iii) o vendedor e o comprador. Daí surgir a questão da responsabilidade dessas plataformas frente a problemas decorrentes da compra: envio de produtos defeituosos, atraso ou não entrega etc.
Relativamente aos shoppings físicos, o consumidor médio distingue facilmente que comprou na loja A e não na loja B; sendo natural a dedução de que eventual responsabilidade cabe à loja A. Tal percepção não é evidente nos shoppingsvirtuais, o que leva o consumidor médio a concluir: (i) que a compra foi efetuada na plataforma e não diretamente do fornecedor; e (ii) que, tanto fornecedor, quanto plataforma respondem por problemas e defeitos na entrega do produto. Por isso, é fundamental que o consumidor possa entender o modelo de negócio ínsito à plataforma, sendo isso possível mediante informação precisa. Caso não haja informação clara e individualizada acerca das responsabilidades do fornecedor e da plataforma, esta responderá, consoante os preceitos do direito do consumidor (aparência e dever de informação).
É referencial sobre o tema o Recurso Especial 1.444.008/RS, julgado pela Terceira Turma do STJ, cuja relatora foi a Ministra Nancy Andrighi[4]. Um cliente pesquisou no site de busca shopping UOL e, ao encontrar o produto desejado, dentre os resultados de busca, foi direcionado à página do respectivo fornecedor. Em razão de problemas com o produto, o cliente processou o shopping UOL, tendo o STJ exarado o entendimento abaixo.
"39. Contudo, ao se abster de participar da interação que levará à formação do contrato eletrônico entre consumidor e o vendedor do produto propriamente dito, não há como lhe imputar responsabilidade por qualquer vício da mercadoria ou inadimplemento contratual.
40. Diante de todo o exposto acima, conclui-se que o provedor do serviço de busca de produtos — que não realiza qualquer intermediação entre consumidor e vendedor — não pode ser responsabilizado pela existência de lojas virtuais que não cumprem os contratos eletrônicos ou que cometem fraudes contra os consumidores, da mesma forma que os buscadores de conteúdo na Internet não podem ser responsabilizados por todo e qualquer conteúdo ilegal disponível na rede.
41. Em consequência, pela natureza do serviço prestado pela recorrente, não incide na hipótese dos autos os artigos 3º e 7º do CDC, devido à impossibilidade de considerá-la participante na cadeia do fornecimento do produto à recorrida, sequer como fornecedor equipado, por não deter qualquer posição de poder ou influência sobre o consumidor no momento do aperfeiçoamento do contrato eletrônico."
O STJ fixou a tese de que sites de busca, como Buscapé, Zoom, Shopping UOL não são marketplaces, mas apenas plataformas de comparação de preços, que direcionam o consumidor para página de terceiro/fornecedor; sendo o ato de aquisição do produto efetuado tão-somente na página do site do fornecedor. Assim sendo, essas plataformas de buscas não são responsáveis solidárias por eventuais defeitos advindos dessas compras. Interpretando-se a contrário senso, a plataforma que exercer qualquer atividade de intermediação entre consumidor e fornecedor, responderá por eventuais problemas.
Há vários outros julgados do STJ na mesma linha da não responsabilização das plataformas, por elas funcionarem como simples ‘classificados’, sendo irresponsáveis por defeitos nos produtos por não integrarem a cadeia de consumo, isto é, não receberem o pagamento, não possuírem canal próprio de comunicação entre comprador e vendedor e não serem responsáveis pelo envio do produto ou fornecimento do serviço:
Ausência de Responsabilidade do Buscapé pela não entrega de produto — AREsp 144.823/RJ – Rel. Min. Raul Araújo (2016)[5]; Ausência de Responsabilidade Webmotors por veículo clonado – AgInt no AREsp 862.511/SP – Rela. Mina. Isabel Gallotti (2017)[6]; Ausência de Responsabilidade da OLX por golpe na compra de veículo – AREsp 1.200.653/SP – Rel. Min. Lázaro Guimarães (2018)[7]; Ausência de Responsabilidade do Buscapé por produto adquirido em site de terceiro – AREsp 1.225.274/SP – Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze (2018)[8]; e Ausência de Responsabilidade do Decolar por cancelamento de voo pela companhia de passagens aéreas adquiridas na plataforma – REsp 1.791.010/RO – Rel. Maria Isabel Gallotti (2019)[9].
Em 2018, ao julgar o REsp 1.740.942/RS — Rel. Min. Marco Buzzi —, o STJ responsabilizou solidariamente o marketplace e o ImovelWeb, por locação não efetivada sem a devolução da caução, por entender que o marketplace interagiu com o consumidor e o anunciante, adotando postura de intermediador no negócio. Passou assim, a integrar a cadeia de consumo, responsabilizando-se, consequentemente, pelo incumprimento do contrato pelo fornecedor.
Face ao exposto, ao analisar-se os modelos de negócio das plataformas de marketplace, passou-se a distinguir-se dois grupos distintos: (i) marketplacesque não recebem o pagamento e não são responsáveis por defeitos do produto etc., por funcionarem como simples ‘classificados’, não integrando a cadeia de consumo. Poderiam, entretanto, ser responsabilizados com base na teoria da aparência, caso não deixem claro seu modelo de negócio; e (ii) marketplacesque recebem o pagamento e/ou entregam o produto; sendo, por conseguinte, integrantes da cadeia de consumo e, ipso facto, responsáveis por quaisquer falhas na prestação do serviço.
A Corte de Justiça Europeia, ao julgar um caso entre a L’Oreal e o site de busca eBay, em 2011, no qual o provedor era acusado de hospedar anúncios de produtos falsos da citada companhia, elaborou diferenciação relevante, no tocante à responsabilização do provedores que não recebem e não entregam o produto; dividindo-os em ativos e passivos.
A figura “passiva” é aquela regulamentada pela Diretiva Europeia 2000/31 sobre comércio eletrônico, em seu art. 14, e que estabelece a ausência de responsabilidade do provedor de hospedagem que meramente armazene a informação sem atuar ativamente em relação ao conteúdo armazenado. Já a figura “ativa”, por ir além do simples armazenamento, responsabiliza-se também em relação a eventual ilícito praticado pelo “hóspede” que o contratou.
No caso concreto, o eBay foi responsabilizado por produto falso da marca L’Oreal disponível em seu sítio eletrônico, em sua figura “ativa”. A Corte de Justiça Europeia entendeu que o eBay não se limitava, neutramente, apenas a hospedar o conteúdo, mas classificava-o, indexando e utilizando os produtos para fins de marketing. Portanto, era passível de responsabilização, por integrar a cadeia de consumo.
Objetivando regular essa nova realidade social, a União Europeia, por meio do Regulamento EU 1150/2019[10], reconheceu que os marketplaces espraiam-se no mercado e vêm, diuturnamente, ganhando mais espaço. Por essa razão, estabeleceu regramento jurídico para equilibrar a relação contratual entre plataforma e fornecedores profissionais, notadamente na vertente concorrencial, na medida em que o crescimento dos marketplaces permite que as plataformas concorram com outros fornecedores, inclusive de maneira desleal.
Não se olvide que o fato de as regras contratuais serem definidas pelas próprias plataformas é fonte de preocupação, mormente pela possibilidade de desequilíbrio (contratos não paritários), mesmo que de natureza empresarial.
Busca a União Europeia regulamentar adequadamente a realidade atual dos marketplaces, estabelecendo condições para a intermediação feita online e regras para o contrato entre as plataformas de marketplace e os fornecedores. Em essência, esse regulamento não se preocupa diretamente com o consumidor, objetivando principalmente a regulamentação entre a plataforma de marketplace e fornecedor que adere à plataforma.
Obviamente, as regras da União Europeia não são aplicáveis no Brasil. No entanto, importam por duas razões: (i) possibilidade de o regramento europeu servir quer de fundamento de projetos legislativos; quer, até mesmo, de embasamento de decisões judiciais (caso frequente com relação às decisões de tribunais administrativos e judiciais, no âmbito do direito da concorrência). O fato de o direito brasileiro, historicamente, pertencer à mesma cepa do direito europeu — família românico-germânica —, facilita enormemente.
Embora as regras da União Europeia não sejam vigentes no Brasil, por serem direito pioneiro acabam passíveis de utilização pelo Judiciário como parâmetro interpretativo das parcas regras brasileiras sobre o assunto, incluindo a análise de desequilíbrio entre plataformas e fornecedores. Como precaução, o mercado deve elaborar contratos mais claros e com regras objetivas, a respeito de suspensão de usuários, “ranqueamento” dos motores de busca e demais pontos previstos no Regulamento 1150/2019 da EU.
[1] Rodas, João Grandino, “Comércio eletrônico em direção ao apogeu”, Revista Eletrônica CONJUR, 2 de julho de 2020.
[2] WEBSHOPPERS, 40º Relatório. Disponível em: <https://www.ebit.com.br/webshoppers/download?pathFile=D%3A%5CEbit%5CSites%5Cwww.ebit.com.br%5CPDF_WS%5C40.webshoppers_2019.pdf&fileName=Webshoppers_40.pdf>. Acesso: 14 de julho de 2020.
[3] O presente artigo segue as linhas mestras e a fundamentação, feitas em palestra pelo Professor Marcelo Chiavassa, no Programa de Conferências on-line do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (CEDES), em 10 de julho de 2020; tendo-se valido também da obra: Chiavassa, Marcelo e Andrade, Vitor Morais de, “Manual de Direito Digital”, São Paulo, Tirant lo Blanch Brasil, 2020.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. REsp nº 1.444.008-RS. Relator: Min. Nancy Andrighi. Data da publicação: 25 de setembro de 2016.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. AREsp 144.823-RJ. Relator: Min. Raul Araújo. Data da publicação: 23 de novembro de 2016.
[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. AgInt no AREsp 862.511-SP. Relator: Min. Maria Isabel Gallotti. Data da publicação: 8 de março de. 2017.
[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. AREsp 1.200.653-SP. Relator: Min. Lázaro Guimarães. Data da publicação: 27 de março de 2018.
[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. AREsp 1.225.274-SP. Relator: Min. Marco Aurélio Bellizze. Data da publicação: 1º de fevereiro de 2018.
[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. REsp 1.791.010-RO. Relator: Min. Maria Isabel Gallotti. Data da publicação: 11 de março de 2019.
[10] UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2019/1150 do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à promoção da equidade e da transparência para os utilizadores profissionais de serviços de intermediação em linha, 20 jun. 2019. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019R1150&from=EN>. Acesso: 14 de julho de 2020.
João Grandino Rodas é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).
Esse texto foi originalmente publicado na coluna Olhar Econômico da revista eletrônica Consultor Jurídico e pode ser acessado em https://www.conjur.com.br/2020-jul-16/olhar-economico-aspectos-juridicos-marketplace-analise-brasil-uniao-europeia
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