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Perspectivas econômicas e regulatórias para os criptoativos

Hodiernamente assiste-se ao fenômeno da progressiva utilização de recursos tecnológicos para a realização de operações comerciais e financeiras; para a formalização das respectivas relações econômico-jurídicas; e para a constituição dos respectivos documentos ou títulos de crédito. A utilização, nesse contexto, do conceito genérico de ativo virtual não auxilia a compreensão do citado fenômeno, nem permite intuir as normas aplicáveis.

A crescente utilização e formalização de operações comerciais e financeiras por meio tecnológico vem causando a diminuição do uso de documentos físicos. Daí a necessidade e crescente importância da adaptação dos processos de certificação da identidade de pessoas e dos negócios por elas realizados; bem como de seu controle e evidenciação por mecanismos digitais. Tais mecanismos, quando representativos de relações de crédito, podem ser denominados ativos digitais, se a prática dos agentes envolvidos em sua negociação e liquidação os reconhecer dessa forma. Se esses ativos digitais forem criptograficamente assegurados, eles são chamados de criptoativos.

As transações ora examinadas são registradas em um "livro-razão" público, distribuído e imutável, chamado blockchain, que permite o rastreamento em rede de itens, tangíveis ou intangíveis. Em suma, blockchain é uma estrutura de dados totalmente descentralizada, que controla e informa a custo baixo; reduzindo, ademais, de maneira efetiva, os riscos do processo.

A utilização da blockchain para representar, criar ativos, transferir direitos, obrigações e riquezas a eles relativos impõe reflexão sobre: 1) as potencialidades dessa técnica, que alcançou o status de fenômeno econômico; e 2) relativamente aos efeitos dela decorrentes; para definir sua natureza e a extensão de sua regulação pelo Estado.

O fato de os avanços tecnológicos poderem ser, às vezes, disruptivos da ordem econômica não significa, necessariamente, serem eles disruptivos da ordem jurídica. Esta, via de regras, pode e deve absorver a tecnologia nova, sem perder seu estágio de amadurecimento normativo em seus valores centrais, correspondentes, na essência, à segurança jurídica, transparência, compliance e proteção da economia popular.

Não raramente certos avanços alteram a forma pela qual a ordem jurídica deve absorver e qualificar os atos correspondentes. É o caso, exemplificativamente, do fenômeno recente da desmaterialização dos títulos de crédito e da sua circulação em formato quase totalmente eletrônico. Independentemente da qualificação dada às transferências operadas entre titulares de direito (e das discussões que podem resultar dessa qualificação), como ocorre nas questões envolvidas com as regras e os limites de remuneração dos títulos em casos de cessão de direitos ou de endosso envolvendo pessoas fora do Sistema Financeiro Nacional, parece fora de dúvida que o envolvimento de depositárias centrais no processo de imobilização de títulos físicos e de sua desmaterialização para fins de depósito e transferência eletrônica em seus ambientes, incorporou ao direito forma nova de transferência equivalente ao endosso.

Ninguém põe em dúvida os ganhos derivados da regulação editada pela CVM para a organização do mercado e para a segurança jurídica das operações realizadas por intermédio dessa espécie de infraestrutura mercadológica.

A mesma realidade, com resultados idênticos, verifica-se na segregação muito cuidadosa feita pela CVM das atividades de depósito centralizado, de custódia e de escrituração e emissão de certificados de valores mobiliários (serviços objeto das Instruções CVM 541, 542 e 543, de 2013).

Mostrando-se atenta à evolução das formas de organização e de representação das relações econômicas correspondentes a cada uma dessas atividades, a autarquia foi sábia em incorporar à regulação do mercado de capitais atitudes já observadas, precariamente, pelos agentes do mercado, preservando assim o mesmo grau de exigência de satisfação dos interesses públicos envolvidos.

Deve-se refletir, nessa perspectiva, sobre as formas de utilização e aproveitamento de procedimento tecnológico que permite remover intermediários em operações de transferência de valor em meio digital, dispensar controles centralizados e o envolvimento dos órgãos de Estado, para a formação de consenso acerca dos direitos envolvidos nas operações realizadas pelos agentes de mercado.

No processo acima, incumbirá ao regulador identificar a melhor forma de equilibrar as vantagens da absorção, pelo ordenamento, das potencialidades tecnológicas dos criptoativos e controle descentralizado com os riscos que essa técnica pode implicar, caso seja adotada sem um mínimo de regras de governança.

Tal circunstância parece apontar não para a rejeição dessa espécie de ativos e de técnica de representação de negócios econômicos, mas para a associação aos seus processos de criação, custódia e circulação atividades a cargo de infraestruturas de mercado voltadas exatamente para a verificação de pressupostos indissociáveis à estabilidade dos mercados financeiro e de capitais.

Embora sucinta a exposição supra deixa entrever importantes aspectos a serem aclarados e discutidos. Com esse intuito, o Programa de Mestrado Profissional em Direito do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes), com especial apoio da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis), realizará Mesa Científica virtual, no dia 18 de fevereiro de 2022, das 9:30 às 11:30h. A inscrição para o evento poderá ser feito pelo endereço mestrado@cedes.org.br; e acessado pelo link bit.ly/criptocedes.

Os debates caracterizar-se-ão pela interdisciplinaridade, reunindo especialistas do meio acadêmico, da iniciativa privada e do Poder Público. Coordenará a reunião o advogado e pesquisador Rinaldo César Zangirolami e a magistrada Carolina Nabarro Munhoz Rossi. Serão debatedores: Roberto Luis Troster (economista e docente titular do CEDES), Renata Souto Maior Baião (Magistrada em São Paulo e especialista em Direito e Tecnologia), Luís Cazetta (advogado), Paloma Sevilha (Gerente de negócios da Bitrust) e Julia Facklmann (Gerente de regulação e design do Grupo 2TM).


João Grandino Rodas é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

Esse texto foi originalmente publicado na coluna Olhar Econômico da revista eletrônica Consultor Jurídico e pode ser acessado em https://www.conjur.com.br/2021-nov-04/olhar-economico-consideracoes-lei-vale-pedagio-evoluir


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